terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira


O Cineclube Indaiatuba exibe hoje sessão especial - leia-se, mais barata - de "Ensaio sobre a Cegueira". Como não poderei estar presente, fui ver ontem o filme de Fernando Meirelles, baseado no romance de José Saramago, que não li.
Ainda assim, acho que é possível enxergar (essa é boa!) as intenções do autor em criar uma espécie de parábola sobre a naturez humana livre dos freios estabelecidos pelo Estado. A abertura é muito boa, com o japonês ficando subitamente cego e em seguida sendo roubado por um suposto bom samaritano (não se filma em São Paulo impunemente).
Os eventos se sucedem rapidamente até a decisão do governo em confinar os infectados. Aí a coisa não parece mais o Brasil, onde o governo - qualquer governo - leva uma eternidade antes de reconhecer uma calamidade sanitária. É curioso como a cidade parece cosmopolita no início da trama - que poderia se passar em qualquer cidade do mundo - e tão São Paulo na parte final, quando o Estado desaparece e é cada uma por si. Partindo de um diretor paulista tão consciente da câmera quanto Meirelles, isso não é fortuito.
A opção por um elenco multinacional me parece acertado também. Globaliza a situação, o que não aconteceria caso o elenco fosse todo caucasiano ou latino. Li uma recenha criticando a escolha de Gael Garcia Bernal como Rei da Ala 3. Talvez as situações criadas pelo personagem seriam mais abjetas caso seu intérprete fosse um tipo mais repugnante. Mas acho que o astro mexicano tenha dado sua intepretação de um cara comum que aproveita um situação para se tornar um tiranete. É interessante a submissão do casal classe média interpretado por Mark Ruffalo e Julianne Moore à exploração econômica e sexual da Ala 3, sendo que ela só explode quando uma das mulheres é assassinada. Aliás, muito boa as cenas do estupro coletivo e do funeral da moça barbarizada; a primeira de difícil resolução cinematográfica sem cair no sexploitation ou no pudico meia boca- e Meirelles transmitiu o horror da situação evitando os dois extremos - e o segundo um requiem belíssimo que nos lembra que as mulheres nos trazem ao mundo e também nos ajudam a nos despedir dele.
As interpretações fazem jus à reputação de Meirelles como diretor de atores. Julianne Moore conduz com sua categoria habitual o papel principal, enquanto Mark Ruffallo se deixa ficar à sua sombra como marido certinho subitamente colocado numa situação de dependência em relação à mulher. Achei que a personagem de Alice Braga é mais esboçada que desenvolvida, o contrário do casal japonês, um pouco mais tridimensional. Os coadjuvantes comparecem bem quando exigidos, mas destaco o ator Maury Chaykin como o contador cego que assessora o Rei da Ala 3. O veterano coadjuvante tem participação pequena mas marcante no filme, e deve ser por le ser "do mal" que algumas associações de deficientes visuais dos EUA propuseram boicote a "Ensaio...". Seu comportamento como único cego de nascença da trama diz muito sobre a visão de Saramago da natureza humana. E seu fim é identico ao do personagem de Chaykin em "Dança com Lobos". Alguém se lembra?
Só clique se você já viu "Ensaio sobre a Cegueira".

Um comentário:

barbara disse...

tendo livro o ivro há algum tempo...cheguei nervosa à exibição, confesso que esperava ver o horror minucioso e um pouco chatinho da narrativa de Saramago, mas fiquei satisfeita à "visão" (rsrsrs)universal do Fernando, que fez remeter a quem(boa parte) estava assitindo, o belo e podre de ser humano.Lembrei-me, de quando morava no abc e faltava energia eletrica em casa...por horas seguidas,não tinhamos o que fazer, e sentavamos no sofá, contando piadas, historinhas e isso criava uma intimidade, uma proximidade, que talvez só a "cegueira" nos permitisse vivenciar.

Barbara Gaschler