quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Nós somos Charlie, sem adendo

Passada uma semana do atentado contra a revista Charlie Hebdo, ataque terrorista que ainda se estendeu em tiroteios num supermercado kosher e numa planta industrial, totalizando 17 vítimas e três terroristas abatidos, muita coisa ainda há que se esclarecer e debater.
Percebi em muita gente no Brasil a indignação com os atentatos, mas com o adendo de "ah, mas os cartuns eram mesmo insultantes", meio que dando uma justificativa aos terroristas. Como bem notaram Laerte e Luis Fernando Veríssimo, humor como do "Charlie Hebdo" fazem parte de uma tradição cultural francesa, que jamais seria aceita no Brasil e nos EUA. Aqui, prevalece uma certa acomodação, além de uma recente intolerância com o outro, que foi exacerbado nas últimas eleições. Não era bem assim nos tempos do Pasquim, que tinha com um de seus lemas "liberdade é passar a mão na bunda do guarda". Nos EUA da correção política e do puritanismo disfarçado ou não, seria até pior, como o New York Times opinou em editorial.
O que não deveria mudar é a questão de que, seja lá o que seja escrito ou desenhado, nada justifica matar o outro. A caneta pode ser mais forte que a espada, mas não que uma rajada de AK-47. Nem "aproveitar o ensejo" e matar pessoas somente por serem de uma determinada etnia. E ainda o que é esperado por quem idealizou esses crimes, instigar a islamofobia para justificar uma guerra que consideram santa.
O que está em jogo não é somente a liberdade de expressão, mas a intolerância de todas as formas, seja contra quem é considerado iconoclasta, herege, pagão, raça inimiga; ou seja, o outro. No Brasil, felizmente, deixamos de matar por causa da religião há alguns séculos, mas ainda resta a homofobia, a discriminação racial e social, e o que anda crescendo assustadoramente, o ódio contra quem tem convicções políticas diferentes. No último caso, a coisa ainda está somente nas rede sociais, mas num tom que não diminuiu após as eleições.  Para os gays, pretos e pobres, as agressões e mortes são reais, praticados não apenas por intolerantes civis, como pela própria polícia.
Acontecimentos marcantes como este deveriam servir para refletir não como somos vítimas em potencial, mas a respeito do agressor adormecido em nós. A maioria das pessoas não são terroristas, mas deveriam pensar em quão intolerantes podem ser, podemos ser.