Marcos Kimura

Mais do que rememorar o início de um dos períodos mais negros
da história do País, a efeméride deveria servir para olharmos para o presente de
olho nas semelhanças com o cenário de meio século atrás. Está havendo um
recrudescimento do moralismo ( “mulher com roupa curta está pedindo para ser
atacada”), da intolerância e até mesmo do saudosismo da caserna, como atesta
a ridícula – porém, significativa – tentativa de reeditar a Marcha com Deus e a
Família. De certa forma, tudo isso é devidamente alimentado por uma imprensa
decadente que vê na manipulação da informação como forma de voltar a ser relevante
como foi na época das Diretas Já e na deposição de Fernando Collor.
Curiosamente, quando o povo foi às ruas no ano passado,
jornais, revistas e TVs foram apanhados de surpresa, e por conta dos recentes
cortes de pessoal feito nas redações por conta da crise das mídias
tradicionais, restou pouca gente com experiência para fazer uma cobertura
decente dos acontecimentos. Praticamente toda a mobilização foi feita por meio
das redes sociais, que andaram se transformando em palanques, fontes de
informação (falsas e verdadeiras) e manifestações on line, que muitas vezes se veem
frustradas na vida real (nas urnas, especialmente) levando a muitos desses
militantes de sofá a culpar o povo “ignorante” por não sabe votar. Por outro
lado, houve quem tirou a bunda da cadeira e partiu para a mobilização de
verdade, seja à esquerda ou à direita. Ainda é cedo para enxergar algum reflexo
nas eleições que se aproximam.
Pior de tudo é a volta da paranoia anticomunista, que acusa
este governo de querer transformar o Brasil num gigantesca Cuba ou Venezuela. O
anticomunismo é o tradicional catalisador de golpes e tentativas de na América
Latina, e mesmo sendo um anacronismo, a volta insistente desse discurso nos
últimos meses não deixa de ser preocupante.
O que alivia é ver os quartéis em silêncio, sem qualquer
tentativa de usar a data politicamente para confrontar o atual regime democrático.
Claro que o cenário mundial é outro, mas à parte a Guerra Fria no auge no
início dos anos 60 (pouco tempo depois da Crise dos Mísseis de Cuba) o golpe
brasileiro tinha começado a ser gestado em 1922, no Tenentismo. A partir do
episódio do Forte de Copacabana, em que 18 militares e civis enfrentaram as tropas
fiéis a Artur Bernardes, grande parte da oficialidade passou a acreditar na
missão redentora das Forças Armadas de salvar o País das mãos os oligarcas da
política do Café com Leite. A participação na Revolução de 30 foi frustrada
pelas artimanhas de Getúlio Vargas para permanecer no poder, e após 15 anos,
derrubaram o ditador para garantir uma eleição em que dois militares concorriam.
O retorno de Vargas, desta vez eleito diretamente, fez os quartéis
ficarem em polvorosa e tribunos como Carlos Lacerda, secundados por grande
parte da imprensa, pregavam o golpe descaradamente. Getúlio conseguiu reverter
a situação e forma extrema, suicidando-se adiando em 10 anos a quartelada
anunciada.
Quando ela aconteceu, Lacerda, Adhemar de Barros e outros
líderes acharam que, exilando o legado getulista juntamente com o governo João
Goulart, finalmente havia chegado a vez deles. Só que desta feita, os militares
estavam dispostos a exercer o poder sem
a interferência de políticos carismáticos, e cassaram os direitos políticos dos
aspirantes ás eleições de 1965, que nunca aconteceu.
Segundo Elio Gaspari em sua importante obra “As Ditaduras”,
defende que o regime militar implodiu por conta da insubordinação da Linha Dura,
responsável pelo aparato repressivo que, quando não havia mais militantes da
lutar armada para prender, torturar e matar, passou a caçar qualquer opositor. Ernesto Geisel e seu “bruxo”, Golbery do
Couto e Silva, articularam então a abertura lenta, gradual e progressiva,
exonerando o generais mais extremistas e concedendo a anistia parcial.
Mesmo passado todo esse tempo depois da tropa ter se recolhido
à caserna, parece haver um acordo silencioso entre as Forças Armadas e os
sucessivos governos democrático para que os militares não se manifestem sobre
assuntos políticos, em troca de não se investigar os diversos episódios
obscuros da ditadura militar. A atual Comissão da Verdade começa a arranhar a
superfície dos mistérios do período, como a possível assassinato de Juscelino
Kubistchek e o desparecimento de Rubens Paiva. Mesmo assim, os responsáveis
vivos permanecem impunes, muitos sob o manto de uma Lei de Anistia concedida
por seus pares, o que vai na contramão dos vizinhos do Cone Sul, cujos
militares também haviam deixado garantias de impunidade no aparato legal, devidamente
derrubadas pela democracia. Como é que se supõe que o Brasil siga em frente
como país civilizado enquanto os crimes da ditadura permanecerem impunes e
fatos históricos como a morte de João Goulart no exílio ou o atentado do
Rio-Centro continuarem sem solução?
Meio século depois do 1º de abril de 1964, ele permanece um
corpo insepulto na sala de estar da democracia. É um cadáver em decomposição a
céu aberto.
Um comentário:
Gostei bastante! Acho que a persistência destas perguntas não respondidas é o custo da reconstrução da democracia em nosso país, tão grande quanto desigual.
Quando acordo otimista acho que estamos fazendo alguma coisa que preste quando, por exemplo, alguns deixam de passar fome. Outro dias, como na divulgação da pesquisa do IPEA na semana passada, tenho a plena sensação de estarmos andando de lado, quando não para trás.
Um abraço.
Postar um comentário