terça-feira, 1 de abril de 2014

Há meio século...

Marcos Kimura

Escrevo e publico este texto hoje, 1º de abril, por que essa é a data correta do golpe contra João Goulart há 50 anos. 31 de março se tornou o dia oficial da “Revolução” por que os militares não queriam que sua quartelada fosse comemorada no Dia da Mentira – ou dos Tolos, segundo os americanos. Ou seja, a história oficial ainda se dobra à manipulação dos generais quase 30 anos depois da redemocratização do Brasil.

Mais do que rememorar o início de um dos períodos mais negros da história do País, a efeméride deveria servir para olharmos para o presente de olho nas semelhanças com o cenário de meio século atrás. Está havendo um recrudescimento do moralismo ( “mulher com roupa curta está pedindo para ser atacada”), da intolerância e até mesmo do saudosismo da caserna, como atesta a ridícula – porém, significativa – tentativa de reeditar a Marcha com Deus e a Família. De certa forma, tudo isso é devidamente alimentado por uma imprensa decadente que vê na manipulação da informação como forma de voltar a ser relevante como foi na época das Diretas Já e na deposição de Fernando Collor.

Curiosamente, quando o povo foi às ruas no ano passado, jornais, revistas e TVs foram apanhados de surpresa, e por conta dos recentes cortes de pessoal feito nas redações por conta da crise das mídias tradicionais, restou pouca gente com experiência para fazer uma cobertura decente dos acontecimentos. Praticamente toda a mobilização foi feita por meio das redes sociais, que andaram se transformando em palanques, fontes de informação (falsas e verdadeiras) e manifestações on line, que muitas vezes se veem frustradas na vida real (nas urnas, especialmente) levando a muitos desses militantes de sofá a culpar o povo “ignorante” por não sabe votar. Por outro lado, houve quem tirou a bunda da cadeira e partiu para a mobilização de verdade, seja à esquerda ou à direita. Ainda é cedo para enxergar algum reflexo nas eleições que se aproximam.

Pior de tudo é a volta da paranoia anticomunista, que acusa este governo de querer transformar o Brasil num gigantesca Cuba ou Venezuela. O anticomunismo é o tradicional catalisador de golpes e tentativas de na América Latina, e mesmo sendo um anacronismo, a volta insistente desse discurso nos últimos meses não deixa de ser preocupante.

O que alivia é ver os quartéis em silêncio, sem qualquer tentativa de usar a data politicamente para confrontar o atual regime democrático. Claro que o cenário mundial é outro, mas à parte a Guerra Fria no auge no início dos anos 60 (pouco tempo depois da Crise dos Mísseis de Cuba) o golpe brasileiro tinha começado a ser gestado em 1922, no Tenentismo. A partir do episódio do Forte de Copacabana, em que 18 militares e civis enfrentaram as tropas fiéis a Artur Bernardes, grande parte da oficialidade passou a acreditar na missão redentora das Forças Armadas de salvar o País das mãos os oligarcas da política do Café com Leite. A participação na Revolução de 30 foi frustrada pelas artimanhas de Getúlio Vargas para permanecer no poder, e após 15 anos, derrubaram o ditador para garantir uma eleição em que dois militares concorriam.

O retorno de Vargas, desta vez eleito diretamente, fez os quartéis ficarem em polvorosa e tribunos como Carlos Lacerda, secundados por grande parte da imprensa, pregavam o golpe descaradamente. Getúlio conseguiu reverter a situação e forma extrema, suicidando-se adiando em 10 anos a quartelada anunciada.
Quando ela aconteceu, Lacerda, Adhemar de Barros e outros líderes acharam que, exilando o legado getulista juntamente com o governo João Goulart, finalmente havia chegado a vez deles. Só que desta feita, os militares estavam dispostos a exercer  o poder sem a interferência de políticos carismáticos, e cassaram os direitos políticos dos aspirantes ás eleições de 1965, que nunca aconteceu.

Segundo Elio Gaspari em sua importante obra “As Ditaduras”, defende que o regime militar implodiu por conta da insubordinação da Linha Dura, responsável pelo aparato repressivo que, quando não havia mais militantes da lutar armada para prender, torturar e matar, passou a caçar qualquer opositor.  Ernesto Geisel e seu “bruxo”, Golbery do Couto e Silva, articularam então a abertura lenta, gradual e progressiva, exonerando o generais mais extremistas e concedendo a anistia parcial.

Mesmo passado todo esse tempo depois da tropa ter se recolhido à caserna, parece haver um acordo silencioso entre as Forças Armadas e os sucessivos governos democrático para que os militares não se manifestem sobre assuntos políticos, em troca de não se investigar os diversos episódios obscuros da ditadura militar. A atual Comissão da Verdade começa a arranhar a superfície dos mistérios do período, como a possível assassinato de Juscelino Kubistchek e o desparecimento de Rubens Paiva. Mesmo assim, os responsáveis vivos permanecem impunes, muitos sob o manto de uma Lei de Anistia concedida por seus pares, o que vai na contramão dos vizinhos do Cone Sul, cujos militares também haviam deixado garantias de impunidade no aparato legal, devidamente derrubadas pela democracia. Como é que se supõe que o Brasil siga em frente como país civilizado enquanto os crimes da ditadura permanecerem impunes e fatos históricos como a morte de João Goulart no exílio ou o atentado do Rio-Centro continuarem sem solução?


Meio século depois do 1º de abril de 1964, ele permanece um corpo insepulto na sala de estar da democracia. É um cadáver em decomposição a céu aberto.

Um comentário:

Chico Orlandini disse...

Gostei bastante! Acho que a persistência destas perguntas não respondidas é o custo da reconstrução da democracia em nosso país, tão grande quanto desigual.
Quando acordo otimista acho que estamos fazendo alguma coisa que preste quando, por exemplo, alguns deixam de passar fome. Outro dias, como na divulgação da pesquisa do IPEA na semana passada, tenho a plena sensação de estarmos andando de lado, quando não para trás.
Um abraço.