terça-feira, 17 de julho de 2012

Segunda-feira de gala no cinema


Nesta segunda-feira, fiz programa duplo de cinema, assistindo quase na sequencia "Na Estrada", de Walter Salles; e “Sombras da Noite”, de Tim Burton. Dois grandes filmes, mas completamente diferentes.
Vamos começar pelo fim. “Sombras da noite” é, como Pedro de Queiroz comentou no Facebook, “ reúne o melhor de ‘Batman Returns’, ‘Ed Wood’ e ‘Sleepy Hollow’ e vai até além”. Para quem conhece o Pedro – um cinéfilo com um olhar muito pessoal, mas fundamentado – sabe que esses são seus Burtons preferidos. E acho que meus também.
A produção foi uma iniciativa de Johnny Depp, fã da soap opera original, que, segundo Pedro, chegou a ser exibido no Brasil com o título “Sombras Tenebrosas” (Cortesia de sua memória prodigiosa. Isso você não acha nem no Google). Embora seja da mesma geração, não assisti, mas intuo que Burton manteve as reviravoltas típicas do gênero do original. Curiosamente, quase ninguém da crítica especializada se deu conta das qualidades do filme, que se não for o melhor de Burton, certamente é o melhor pós-“Planeta dos Macacos” (e olhe que isso inclui os notáveis “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas” e “Sweeney Todd”). Acho que a principal dificuldade foi “encaixar” a obra num gênero: É terror? É “terrir”? Não, é uma soap-opera dark, como o original.
Depp é novamente o outsider, como em todas as suas colaborações com Tim Burton. De novo, Helena Booham-Carter é a amante-cúmplice-ocasional, como em “Peixe grande e suas histórias maravilhosas” e “Sweeney Todd”. Michelle Pfeiffer, que viveu um dos seus grandes momentos no cinema como a Mulher-Gato de “Batman – O Retorno”, deve ter sido escalada só para dizer a memorável linha “You'll have to imagine us on a better day”. Mais “Crepúsculo dos Deuses” impossível.
Pedro refere cena de sexo entre Barnabas e Angelique a “Batman – O Retorno”, mas lembra também o longo beijo entre Ingrid Bergman e Cary Grant em “Interlúdio” e, replicado pelo próprio e Eve Marie-Saint em  “Intriga Internacional”, em que Hitchcock aplica um grande drible no Código Hays. A referência ao Ciclo Poe de  Roger Corman, de fato, é quase explícita. A participação de Christopher Lee é interessante. Da mesma forma como Ed Wood ressuscitou o ex-Drácula Bela Lugosi, Tim Burton trouxe à tona o Vampiro da Noite da Hammer em “A Lenda do Cavaleiro Se Cabeça” (só depois desse é que ele foi chamado para as trilogias “Star Wars” e “Senhor dos Anéis”), “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (como... dentista!) e agora sendo possuído por um vampiro.
Manter a ação nos anos 70, ao invés de atualiza-lo aos dias atuais foi um achado. As referencias pop – especialmente na música – são sensacionais, coroada pela participação de Alice Cooper (“A mulher mais feia que já vi”, segundo Barnabas Collins). Barry White, T. Rex, Carpentes (“Do you mean to say that she has a penchant for woodworkers?” Sensacional!) e Elton John compõe a colagem musical do filme, algo raro para Tim Burton, que em geral prefere trilhas musicais originais. Mas as canções não apenas dão fundo musical, mas também comentam a ação (“No more, Mr. Nice Guy”, “I’m sick of you”). 

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 “On the Road”, romance seminal de Jack Kerouac, seria para a Geração Beat o que “Acossado” foi para a Nouvelle Vague. Se Walter Salles não foi fiel à narrativa propriamente dita – e quem poderia? – conseguiu extrair em sua obra o espírito do romance e o período em que se passa, com muito sexo, drogas e bebop, a trilha sonora oficial dos beatniks.  É um dos melhores trabalhos do diretor, do nível de “Terra Estrangeira”, “Central do Brasil” e “Abril Despedaçado”, só que desta vez com um elenco internacional recheado de nomes de prestígio, como Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams, Steve Buscemi, além do trio central formado por Sam Riley, Garret Hedlund – que mostra um talento insupeito para quem viu “Tron 2” – e Kristen Stewart, num trabalho no mínimo corajoso para quem é um ícone da sociedade de consumo adolescente.
Escrevi anteriormente que o livro foi publicado no Brasil pela Braziliense, mas diversas fontes dão conta de que foi pela gaúcha LP & M, com tradução de Eduardo “Peninha” Bueno, o que faz muito sentido. Devo ter sido traído pela memória porque, na época, praticamente tudo o que era relevante foi publicado pela Brazileinse, então dirigida pro Luiz Schwarcz, futuro Companhia das Letras.
Anyway, assistindo o filme, veio-me a lembrança o período em que li o livro, meados dos anos 80, uma época em que vários elementos da história estavam na moda no Brasil, incluindo a literatura beat. O bebop estava sendo redescoberto, na época, os únicos discos disponíveis do gênero eram os da Imagem, praticamente piratas, com péssima qualidade sonora, muitas vezes gradas ao vivo com equipamento amador, mas que revelavam a genialidade de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e companhia. Logo, a loja de discos Breno Rossi começaria a lançar edições de melhor qualidade, incluindo Miles Davis, Duke Ellington e outros gigantes do jazz. Não foi à toa que foi na época que começou o saudoso Free Jazz Festival. Outra coisa que talvez passe batido por alguns é a cabine de orgone de Old Bull Lee, originário das teorias de Wilhelm Reich, outra moda dos anos 80 (na verdade, da virada dos 70 para os 80) no Brasil.
Nessa mesma, época eu estudava Psicologia e escrevi um trabalho para o professor João Augusto Freyze Pereira (autor de “O que é loucura”, da coleção Primeiros Passos) tentando estabelecer o fenômeno da moda das literaturas noir (Dahiell Hammet e Raymond Chandler) e beat com o período contemporâneo no Brasil. Era muita ambição intelectual, mas ele gostou do tema, mesmo tendo pouco a ver com o que ele estava ministrando.
A coisa em comum entre os escritores noir e os beat era o fato de serem do pós-guerra – a Primeira Guerra para Hammet e a Segunda para Kerouac e companhia. E os anos 80 no Brasil? Bom, não vínhamos de um conflito global, mas de uma ditadura militar que, se não teve a dimensão das “guerras sujas” no Chile e Argentina, deixou cicatrizes profundas, que perduram até hoje. Nós que entramos na universidade no início dos anos 80, convivíamos com veteranos das passeatas de 1977, provocadas pelos assassinatos do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Esses, por sua vez, tinham como gurus e ídolos os caras que tinham ido para a luta armada, alguns mortos e desparecidos e outros exilados. Com a abertura política e posterior redemocratização, nossa geração ficou entre o engajamento político e o hedonismo do sexo, drogas e roquenrol. Daí a curiosa identificação com o frenesi sensorial dos beat e o desencanto e cinismo de Hammet com as “causas” (ainda que ele tenha se negado a dedurar seu antigos companheiros de Partido Comunista, mesmo que não acreditasse mais em Marx.). Para nós, egressos dos anos de chumbo que apenas vimos de relance, havia o peso desse passado recente, mas também a perspectiva de um porvir sem palavras de ordem, mais livre em todos os sentidos. Talvez por isso nos identificássemos com os beatniks, mesmo separados deles por quatro décadas. 

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