segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Considerações sobre "Django Livre"

O quarteto principal em um único enquadramento

Primeira coisa a dizer sobre “Django Livre”: é muito bom, e é programa imperdível para cinéfilos em geral. É lógico que conhecer um pouco de western spaghetti ajuda, já que Quentin Tarantino usa e abusa de suas marcas registradas, que de certa forma deu sobrevida ao faroeste americano, moribundo nos anos 60 e 70, auge do bang-bang à italiana. Sérgio Leone deu respeitabilidade ao gênero, com sua trilogia dos dólares e a obra-prima “Era uma vez no Oeste”. Mas Tarantino tem como referencia outro Sérgio, o Corbucci, um daqueles diretores que trabalhavam incessantemente na então prolífica indústria cinematográfica italiana, mas que nunca entrou para o clube dos “maestros”. No entanto, fez grandes filmes como o próprio “Django” original, “Vamos matar, companheiros” e “O Vingador Silencioso”.
 É curioso como nenhum crítico tenha percebido o sarcasmo de Tarantino contra seus próprios compatriotas em “Bastardos Inglórios” e agora em “Django Livre”. No primeiro, quem praticam os atos mais brutais e os massacres mais sagrentos são os ianques. O diretor ainda brinca com a ingenuidade de grande parte dos roteiros “men on mission” que ele homenageia no filme: seria possível um bando de americanos francamente monoglota conseguir se passar por alemães ou mesmo italianos em plena Europa ocupada? De forma categórica e cinematograficamente primorosa, Tarantino mostra que não.
Seu western spaghetti na verdade se passa bem antes do período clássico dos faroestes, que são as décadas 1870 e 1880. Datando sua história em 1858, o cineasta coloca a ação na época e no coração do escravagismo, quando ninguém imaginava que dois anos depois, Abraham Lincoln dividiria o país por causa da abolição, tema do filme de Spielberg que estreia na próxima sexta, aliás. O período é ideal para abordar uma das maiores vergonhas da civilização ocidental, mas não é o melhor para o bang-bang. Revólveres ainda não eram tão fáceis de encontrar e ainda não haviam sido inventados os rifles com cartucho metálico (a tecnologia da morte só seria incrementada pela Guerra Civil). Mas é uma licença poética menor em relação ao massacre de Adolf Hitler e toda a elite nazista em seu filme anterior. 
Com revolveres Colt e rifles Henry e Sharp (ambos não existentes em 1858), Django (Jamie Foxx) e o dr. King Schultz (Christoph Waltz, ganhador do Globo de Ouro e candidato ao Oscar de novo) detonam malfeitores e escravagistas - entre os quais, Don Johnson e uma hilária proto-Klu Klux Klan -  em um mar de sangue e tripas, para alegria e catarse da plateia, pois vemos ao mesmo tempo a crueldade da escravidão, essa sim,com grande acuidade histórica, incluindo o instrumentos de tortura usados para punir e/ou dificultar a fuga, que eu mesmo pensava que eram exclusividade luso-brasileira (uma pesquisa rápida mostra que houve intercâmbio de técnicas de tortura entre EUA e Brasil muito antes de Dan Mitrione).
Mas como vários grandes cineastas, como Hitchcock, Buñuel e Almodóvar, Tarantino cede às suas obsessões. É notória sua obsessão por pés femininos, ainda mais grandes como os de Uma Thurman, mas menos percebida ou comentada é como ele gosta de judiar das mulheres (nos filmes, é claro). Suas heroínas são habitualmente estupradas, torturadas, esfaqueadas e assassinadas. Depois de Uma em “Pulp Fiction” e “Kill Bill”, das pobres Vanessa Ferlito, Sydney Tamia Poitier, Jordan Ladd, Rose McGowan e Mary Elisabeth Winsted em “À Prova de Morre”;  Mèlani Laurent e Diane Kruger em “Bastardos Inglórios, agora é a vez de Kerry Washington comer o pão que o diabo amassou. Seu calvário é a motivação para que seu homem parta em sua Odisséia sem Ítaca. A opção por Foxx ao invés de Will Smith, como se pretendia inicialmente, foi acertada: ele passa a intensidade da paixão pela mulher que o leva a uma busca quase suicida.
Até que Django a encontre, Brunhilde Von Shaft (Kerry Washington) sofre muito
Tem razão quem acha que a Academia de Hollywood esnobou novamente Leonardo Di Caprio. Seu fazendeiro sulista é sensacional, e justifica ele ter sido a primeira escolha para ser o Coronel Hans Landa (Tarantino acabou preferindo um ator que falasse alemão fluente, para sorte de Waltz), especialmente em sua grande cena, em que cortou a mão de verdade.  Outro que brilha é Samuel L. Jackson como o mordomo f.d.p.. O personagem é uma ótima sacada, faz o roteiro escapar do maniqueísmo preto e branco. Gente como Spike Lee fica furioso por ele abusar do termo nigger em quase todos seus filmes, e seu parceiro desde “Pulp Fiction” dispara um a cada meio minuto. Assim como o holocausto judeu só foi possível com o auxílio e conivência dos próprios judeus, a escravidão nas Américas só foi possível com a participação ativa de muitos negros como o personagem de Jackson, que ainda manda um contemporâneo motherfucker para completar a provocação.
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Aliás, acabo de ler no ótimo “1493”, de Carl C. Mann (autor do igualmente fundamental “1491”), que “os africanos da região central insistiam que os visitantes europeus usassem a palavra portuguesa “negro” para se referir a escravo e a palavra portuguesa “preto” para se referir a africanos livres”. Daí, o termo pejorativo em inglês “nigger”, de negro, enquanto os afronorte-ameticanos se autodenominam “black”. Aqui, onde falamos português, é o contrário: “preto” é feio e negro que é “bonito”. 

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