![]() |
O quarteto principal em um único enquadramento |
Primeira coisa a dizer sobre “Django Livre”: é muito bom, e
é programa imperdível para cinéfilos em geral. É lógico que conhecer um pouco
de western spaghetti ajuda, já que Quentin Tarantino usa e abusa de suas marcas
registradas, que de certa forma deu sobrevida ao faroeste americano, moribundo
nos anos 60 e 70, auge do bang-bang à italiana. Sérgio Leone deu respeitabilidade
ao gênero, com sua trilogia dos dólares e a obra-prima “Era uma vez no Oeste”. Mas
Tarantino tem como referencia outro Sérgio, o Corbucci, um daqueles diretores
que trabalhavam incessantemente na então prolífica indústria cinematográfica
italiana, mas que nunca entrou para o clube dos “maestros”. No entanto, fez
grandes filmes como o próprio “Django” original, “Vamos matar, companheiros” e “O
Vingador Silencioso”.
É curioso como nenhum
crítico tenha percebido o sarcasmo de Tarantino contra seus próprios
compatriotas em “Bastardos Inglórios” e agora em “Django Livre”. No primeiro,
quem praticam os atos mais brutais e os massacres mais sagrentos são os ianques. O diretor
ainda brinca com a ingenuidade de grande parte dos roteiros “men on mission”
que ele homenageia no filme: seria possível um bando de americanos francamente
monoglota conseguir se passar por alemães ou mesmo italianos em plena Europa
ocupada? De forma categórica e cinematograficamente primorosa, Tarantino mostra
que não.
Seu western spaghetti na verdade se passa bem antes do
período clássico dos faroestes, que são as décadas 1870 e 1880. Datando sua
história em 1858, o cineasta coloca a ação na época e no coração do
escravagismo, quando ninguém imaginava que dois anos depois, Abraham Lincoln
dividiria o país por causa da abolição, tema do filme de Spielberg que estreia na
próxima sexta, aliás. O período é ideal para abordar uma das maiores vergonhas
da civilização ocidental, mas não é o melhor para o bang-bang. Revólveres ainda
não eram tão fáceis de encontrar e ainda não haviam sido inventados os rifles
com cartucho metálico (a tecnologia da morte só seria incrementada pela Guerra
Civil). Mas é uma licença poética menor em relação ao massacre de Adolf Hitler
e toda a elite nazista em seu filme anterior.
Com revolveres Colt e rifles Henry e Sharp (ambos não
existentes em 1858), Django (Jamie Foxx) e o dr. King Schultz (Christoph Waltz, ganhador do Globo de Ouro e candidato ao Oscar de novo)
detonam malfeitores e escravagistas - entre os quais, Don Johnson e uma hilária proto-Klu Klux Klan - em um mar de sangue e tripas, para alegria
e catarse da plateia, pois vemos ao mesmo tempo a crueldade da escravidão, essa
sim,com grande acuidade histórica, incluindo o instrumentos de tortura usados
para punir e/ou dificultar a fuga, que eu mesmo pensava que eram exclusividade luso-brasileira
(uma pesquisa rápida mostra que houve intercâmbio de técnicas de tortura entre
EUA e Brasil muito antes de Dan Mitrione).
Mas como vários grandes cineastas, como Hitchcock, Buñuel e
Almodóvar, Tarantino cede às suas obsessões. É notória sua obsessão por pés
femininos, ainda mais grandes como os de Uma Thurman, mas menos percebida ou
comentada é como ele gosta de judiar das mulheres (nos filmes, é claro). Suas heroínas são habitualmente estupradas,
torturadas, esfaqueadas e assassinadas. Depois de Uma em “Pulp Fiction” e “Kill
Bill”, das pobres Vanessa Ferlito, Sydney Tamia Poitier, Jordan Ladd, Rose
McGowan e Mary Elisabeth Winsted em “À Prova de Morre”; Mèlani Laurent e
Diane Kruger em “Bastardos Inglórios, agora é a vez de Kerry Washington comer
o pão que o diabo amassou. Seu calvário é a motivação para que seu homem parta em sua
Odisséia sem Ítaca. A opção por Foxx ao invés de Will Smith, como se pretendia inicialmente, foi acertada: ele passa a intensidade da paixão pela mulher que o leva a uma busca quase suicida.
![]() |
Até que Django a encontre, Brunhilde Von Shaft (Kerry Washington) sofre muito |
Tem razão quem acha que a Academia de Hollywood esnobou
novamente Leonardo Di Caprio. Seu fazendeiro sulista é sensacional, e justifica
ele ter sido a primeira escolha para ser o Coronel Hans Landa (Tarantino acabou
preferindo um ator que falasse alemão fluente, para sorte de Waltz),
especialmente em sua grande cena, em que cortou a mão de verdade. Outro que brilha é Samuel L. Jackson como o
mordomo f.d.p.. O personagem é uma ótima sacada, faz o roteiro escapar do maniqueísmo preto e branco. Gente como Spike Lee fica
furioso por ele abusar do termo nigger em quase todos seus filmes,
e seu parceiro desde “Pulp Fiction” dispara um a cada meio minuto. Assim como o holocausto judeu só foi possível com o auxílio e conivência dos próprios judeus, a escravidão nas Américas só foi possível com a participação ativa de muitos negros como o personagem de Jackson, que ainda manda um contemporâneo motherfucker para completar a provocação.
***
Aliás, acabo
de ler no ótimo “1493”, de Carl C. Mann (autor do igualmente fundamental “1491”),
que “os africanos da região central insistiam que os visitantes europeus
usassem a palavra portuguesa “negro” para se referir a escravo e a palavra
portuguesa “preto” para se referir a africanos livres”. Daí, o termo pejorativo
em inglês “nigger”, de negro, enquanto os afronorte-ameticanos se autodenominam
“black”. Aqui, onde falamos português, é o contrário: “preto” é feio e negro que
é “bonito”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário