Mesmo que nãos seja a redenção de Woody Allen – Daniel Piza, d’O Estadão, acha que não – “Vicky Cristina Barcelona” é interessante o suficiente para que o cineasta voltasse a ser destaque das editorias culturais dos jornais e revistas. Quase todo mundo deu seu pitaco sobre este filme – que será a próxima atração do Cineclube Indaiatuba no dia 4 às 19h30 – e o elenco talentoso e bonito certamente contribuiu para isso.
O primeiro filme de Woody Allen que assisti foi “O Dorminhoco”, no finado Cine Alvorada. Era uma comédia quase convencional, mas inteligente o bastante párea ganhar uma refilmagem não assumida anos depois – denominada “O Demolidor”, com Sylvester Stallone. Mas minha primeira epifania com Allen foi com “Manhattan”, no Cine Regente, em Campinas, quando já estava no colegial. Fui com uma turma da escola – Etecap, então Coticap – e só eu gostei. Desde então passei a ver todos os filmes dele, incluindo os que foram lançados antes.
Apesar de ter deixado de acompanhar sua filmografia com assiduidade desde “Todo Mundo diz Eu te Amo” (pra mim, o início de uma fase ruim que vai até “Match Point”), acho que sou habilitado para fazer um resumo da ópera de Woody Allen, destacando seus pontos altos.
Vamos dividir sua carreira por fases:
Os primórdios - Sua estréia foi com “O que há, Tigresa?” (de 1966, estrelado pelas duas Bond girls japonesas de “Só se Vive Duas Vezes” e que tem lançamento em DVD mo Brasil anunciado para breve), que era mais uma brincadeira em que ele pegou um filme policial japonês e dublou como lhe deu na telha. Seu primeiro filme mesmo foi “Um Assaltante bem Trapalhão” (1969, que aparentemente não está em catálogo em DVD no Brasil), uma comédia criativa que satiriza determinados tipos de documentários em voga nos EUA. “Bananas” (1971) homenageia Chaplin, satiriza as ditaduras e revoluções latino-americanas – o caudilho da história se chama Emílio Vargas, dois dos nossos – e explora o inesgotável filão da baixa auto-estima do diretor (“sinto que está faltando alguma coisa”, diz Louise Lasser, sua namorada no filme e fora dele, na cama). “Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar” (1972) é inspirado num best-seller de auto-ajuda da época, absolutamente anarquizado por Allen. Dividido em capítulos, os pontos altos são os episódios em que Gene Wilder se apaixona por uma ovelha, a homenagem aos filmes italianos – especialmente Antonioni – e o último, em que Burt Reynolds e Tony Randall comandam a área cerebral responsável pela ereção e Allen é um espermatozóide.
Fase Diane Keaton – É durante o período de relacionamento pessoal e profissional com Diane Keaton que Woody Allen constrói sua reputação de cineasta importante. Começa com um filme escrito e estrelado por ele, baseado em uma peça sua, mas dirigido por Herbert Ross, “Sonhos de um Sedutor” (1972, não disponível em DVD). Ele interpreta um recém-divorciado que tem como amigo invisível Humphrey Bogart, que lhe da as dicas para conquistar a mulher por quem está apaixonado, a esposa de seu melhor amigo, vivida por Diane Keaton. Algumas das melhores gags de Allen estão nesse filme, como quando ele aborda uma garota diante de um quadro de Pollock num museu ou quando ele recita o monólogo final de Casablanca para Diane no aeroporto. O já citado “O Dorminhoco” (1973) é a história de um clarinetista que fica em animação suspensa por 100 anos e quando acorda se vê num mundo completamente diferente. Woody queria fazer o filme em Brasília, mas o orçamento não permitiu.
O início Allen “cabeça” se dá, no entanto, em “A Última Noite de Boris Gruschenko” (1975) em que ele parodia duas de suas paixões: a literatura russa e Ingmar Bergman, que recebe hilárias citações de “Persona” e “O Sétimo Selo”. O ponto alto da parceria Allen-Keaton aconteceria em “Annie Hall” (1977) desgraçadamente batizado aqui como “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”. Hall era o verdadeiro sobrenome de Diane e “Annie” seu apelido. O personagem era, portanto, a própria, àquela altura já rompida romanticamente com Allen. As gags são geniais, como a discussão na fila do cinema sobre Marshall McLuhan (o criador do conceito da Aldeia Global), com a intervenção do próprio; a famosa cena das lagostas e quando Allen espirra na carreira na primeira vez que vai experimentar cocaína. Foi sua consagração em termos de Academia: ganhou os Oscar de Filme, Diretor, Roteiro e Atriz, para Diane Keaton.
Animado com o sucesso dessas comédias ambiciosas, ele faz sua primeira tentativa de fazer cinema sério, no estilo de seus amados mestres europeus. “Interiores” (1978) é um sub-Bergman que foi recebido com frieza pela crítica e ignorado pelo público. Mas em seguida ele realizaria seu filme mais belo, esteticamente falando. “Manhattan” (1979) é uma ode visual à cidade de Nova York. A abertura ao som de “Rhapsody in Blue” – de Gershwin, de quem, aliás, são todas as canções do filme – é antológica. O monólogo final, em que ele arrola as coisas que fazem a vida valer a pena também é inesquecível. Meryl Streep em começo de carreira faz sua ex-mulher que o trocou por outra (mulher), em mais uma piada autodestrutiva.
“Memórias” (1980) não tem mais Diane Keaton fisicamente no elenco, mas ela é obviamente a inspiração para a personagem de Charlotte Rampling, no que é o “Oito e Meio” de Woody Allen. A abertura com o sonho dos trens marca a estréia de Sharon Stone no cinema.
Fase Mia Farrow – A mais famosa sra. Allen foi a musa mais duradoura do cineasta. Tudo começa com o divertido “Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão” (1982), uma divertida paródia de “Sonhos de Uma Noite de Verão”, uma das poucas comédias de Bergman. Logo em seguida, eles fazem “Zelig” (1983), com Allen interpretando um camaleão-humano que é salvo pela psiquiatra vivida por Mia. Talvez seja o melhor filme do diretor nesta fase, concorrendo diretamente com “Hannah e suas Irmãs”, que tem mais fãs. “Broadway Danny Rose” (1984) pode ser considerado um filme menor que anuncia uma seqüência de sucessos. “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), “Hannah e suas irmãs” (1986) e “A Era do Rádio” (1987) marcam o ápice de popularidade e da relação-afetiva a profissional do casal. No entanto, faltava a Mia o Oscar, que Allen como diretor não apenas havia conseguido para sua ex, Diane Keaton, como para seus parceiros de elenco de “Hannah...”, Michael Caine e Diane Wiest. A pressão por papéis que lhe conseguissem uma estatueta dourada fizeram com que eles embarcassem no bergmaniano “Setembro” (1987) e no sem graça “A Outra” (1988). Um episódio em “Contos de Nova York” (1989), filme dividido com outros célebres nova-iorquinos Francis Ford Coppola e Martin Scorcese e Woody Allen finalmente alcança o que sempre almejou, um filme sério à européia convincente. “Crimes e Pecados” (1989) é sua maior realização como diretor de cinema, e sua maior atuação como ator. A cena em que a câmera mostra seu rosto diante da realização do seu maior temor é um primor, principalmente considerando que ninguém o está dirigindo. Martin Landau é um dentista que é pressionado por sua amante de anos e decide matá-la para salvar sua família. Allen é um diretor de documentários que vive à sombra do cunhado bem sucedido, Alan Alda. A história dos dois se cruza no final, numa contundente confissão.
Como Mia teve pouco espaço no triunfo artístico do marido, este resolve fazer um novo veículo para ela, “Alice” (1990), que não funciona. “Neblinas e Sombras” (1992) reúne um elenco galáctico (John Malkovich, Jodie Foster, Kathy Bates, Madonna, John Cusack) para fazer uma homenagem ao neo-expressionismo alemão. O casamento já estava no fim e Allen resolve fazer um retrato dele em “Maridos e Esposas” (1992), a mais descarada desconstrução que um cineasta jamais fez de uma esposa, e sendo interpretada pela própria! Como é que Mia não percebeu isso é um mistério, pois o marido incluiu até um flerte dele com uma garota muito mais nova (Juliette Lewis, a ninfeta da moda na época) no roteiro, dando todos os sinais do escândalo que acabaria com o casamento – e qusase com a carreira dele.
Os anos de liberdade – Após o escândalo da revelação do motivo da separação de Mia Farrow e Woody Allen – o affair dele com a enteada Soon-Yi Previn – não parecia claro que o diretor sobreviveria a ele, principalmente com a ex-mulher fazendo seu papel preferido, o de vítima. Mas nada resiste a um bom trabalho, e em “Assassinato Misterioso em Manhattan” (1993) ele não apenas volta a fazer um filme divertido como retoma a parceria com a ex Diane Keaton, e se isso não for uma provocação, eu não sei o que é. Inspirado pela nova mulher – que felizmente não é atriz – Allen engatou dois grandes trabalhos, “Tiros na Broadway” (1994) e “Poderosa Afrodite” (1995). Um deu o segundo Oscar de Atriz Coadjuvante para Diane West – o segundo trabalhando com Allen – e o outro o mesmo prêmio para Mira Sorvino.
Ah, fazer filme com Woody Allen dá Oscar? Estrelas começaram a fazer fila para participar de projetos do diretor pelo salário do sindicato. “Todos Dizem Eu Te Amo” (1996) tinha no elenco Goldie Hawn, Julia Roberts, Drew Barrymore e Natalie Portman. “Desconstruindo Harry” (1997), considerado um dos melhores dessa fase, teve Demi Moore, Elisabeth Shue, Judy Davis, Robin Williams, Tobey Maguire e Billy Cristal. “Celebridades” (1997) contou com Kenneth Branagh (que faz uma hilária imitação de Allen), Winona Ryder, Leonardo DiCaprio, Charlize Theron e Joe Mantegna.
As celebridades o adoram, mas a verdade é que os filmes de Allen fazem bilheterias cada vez menores e elogios da crítica cada vez mais escassos. “Poucas e Boas” (1999), “Trapaceiros” (2000), “A Maldição do Escorpião de Jade” (2001), “Dirigindo no Escuro” (2002), “Igual a Tudo na Vida” (2003) e “Melinda e Melinda” (2004) têm uma ou outra coisa interessante, mas muito aquém do que Allen já produzira, até que chega Scarlett Johansson e “Match Point” (2005). O encontro do já idoso cineasta com sua nova musa marcou um renascimento cinematográfico, e justamente longe de sua querida Nova York. É praticamente um remake de “Crimes e Pecados” com um elenco mais jovem e com o acréscimo de um elemento ausente no primeiro filme: a paixão sexual. Com Scarlett exalando sensualidade não poderia ser de outra forma. Essa sexualidade escancarada da atriz foi novamente explorada por Allen – agora num tom cômico – em “Scoop” (2006) – e depois de um intervalo de um filme, ele retoma a parceria com a musa em “Vicky Crsitina Barcelona”, seu último trabalho. Aqui ela tem a companhia de outra estrela literalmente caliente, Penélope Cruz, e um equivalente masculino, Javier Barden (ninguém faz Huevos de Oro impunemente).
É curioso que Allen tenha previsto essa mudança para a Europa em “Dirigindo no Escuro”, que termina com ele gritando “Graças a Deus que existe a França”, onde seus filmes são cultuados. Ironia ou não, o fato é que nessa fase européia, o cineasta já filmou em Londres – “Match Point”, “Scoop” e “Um Sonho de Cassandra” (2007) – e, agora, em Barcelona, mas não em Paris (é verdade que parte de “Todos Dizem eu te amo” foi feito lá, e com o diretor-ator de boina e baguette embaixo do braço como manda o figurino). Perguntado por que escolheu Barcelona como locação de seu trabalho mais recente, Allen respondeu: “porque me pagaram para filmar aqui, ora!”
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