quarta-feira, 19 de março de 2008

Coisas que fazem a vida valer a pena


Cheguei do cinema ontem e vi que o Tele Cine apresentaria de madrugada "Manhattan", de Woody Allen, um de meus filmes favoritos de todos os tempos, que não revia há anos. Ele foi lançado em 1979, logo depois daquele que é considerado pela maioria seu melhor filme, "Annie Hall" (com seu estúpido título em português, "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", ganhador de quatro Oscar: Filme, Diretor, Roteiro e Atriz para Diane Keaton) e de sua primeira tentativa de emular o cinema europeu, o bergmaniano "Interiores".

Sempre achava que preferia "Manhattan" a "Annie Hall" apenas por motivos pessoais: enquanto o primeiro assisti abestalhado em Campinas (no cine Regente) quando ainda fazia o colegial, o segundo só vi na TV muitos anos depois, já na faculdade e escoladíssimo em Woody Allen (durante anos não perdia um só filme dele). Afinal, foi "Annie Hall" que revolucionou a comédia americana, com seus diálogos mordazes e mostrando à América e ao mundo o ambiente boêmio e intelectual de Nova York, além de alguns de seus costumes, como na antológica cena em que Allen vai "cheirar" pela primeira vez e acaba espirrando em cima da "parada"). A revisão desta madrugada me mostrou que eu tinha motivos concretos para a preferência.

Começando por aquilo que caracteriza o cinema, que são as imagens. A abertura ao som de "Rhapsody in Blue" com cenas de uma Manhatan em preto e branco que só existe na memória afetiva do diretor é deslumbrante ainda hoje. Os enquadramentos em que os personagens viram detalhes nos ambientes, valorizando o espaço da cidade e dos cenários, faz com que vejamos os dramas daquelas pessoas como alguns dentre os milhões na cidade mais importante do mundo a partir de 1945.

Percebi ainda quantos elementos do filme foram literalmente copiados pela dupla Rob Reiner-Nora Ephron em "Harry e Sally - Feitos uma para o outro", que inaugurou a comédia romântica americana contemporânea. Os diálogos afiados, a discussão sobre relações amorosas, a exploração do cenário de Nova York e a trilha musical com standards da grande música americana - em "Manhattan", apenas composições de George Gerrshwin com o Orquestra Filarmônica de Nova York regida por Zubin Mehta - são alguns elementos em comum aos dois filmes e às comédias subsequentes de Nora Ephron (e que tornariam Meg Ryan o arquétipo do gênero), "Sintonia de Amor" e "Mensagem Para Você".

Existe um lirismo mágico em "Manhattan", como a supracitada abertura, o passeio pelo Central Park com Allen e Mariel Hemingway, a sequência no planetário com Allen e Diane Keaton (copiada em "Harry e Sally") e - principalmente - o final, a partir do momento em que Allen volta a seu livro e começa a arrolar os motivos pelos quais a vida vale a pena, a compreensão de que, de fato amava Mariel, a corrida pela cidade e o encontro no hall do prédio dela. Close no rosto do diretor-ator após a ninfeta deixá-lo desarmado e eclodem os acordes finais da "Rhapsody in Blue".

E o que fazia a vida valer a pena, segundo Woody Allen, em 1977? "Groucho Marx, para citar um nome... e Willie Mays (jogador de beisebol)... e hum... o Segundo Movimento da Sinfonia Jupiter... a versão de Louis Armstrong para "Potato Head Blues"... filmes suecos, naturalmente... "A Educação Sentimental de Flaubert.... uh... Marlon Brando, Frank Sinatra... hum... aquelas incríveis maçãs e peras de Cézanne.... uh, os caranquejos do Sam Wo's.... uh... o rosto de Tracy (Mariel Hemmingway)"

Ídolos da infância, a grande música, cinema, literatura, heróis pessoais, a epifania com a grande pintura, memórias gastronômicas e o amor. Coisas simples que valem a pena.

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