domingo, 3 de agosto de 2008

Cinqüenta anos de Bossa Nova

A efeméride deste ano que mais tem rendido eventos e programas são os 50 anos da Bossa Nova. Em agosto de 1958, João Gilberto lançava o compacto com "Chega de Saudade" no lado A e "Bimbom" do lado B. A primeira, um samba-choro de Tom Jobim e Vinícius de Moraes no qual João já havia colocado seu violão em outra gravação meses antes, o LP "Canção do Amor Demais", de Elizete Cardoso.

Na realidade, nem o compacto muito menos o LP fizeram com que a batida mais tarde chamada de Bossa Nova chamasse a atenção de qualquer um que já não aguardasse uma gravação de João Gilberto. Para toda a turma que seguia o baiano - especialmente a patota que segundo a lenda se reunia no apartamento de Nara Leão para inventar a Bossa Nova - o compacto era o Santo Graal. Mas para ninguém mais.

João Gilberto só começou a chamar a atenção com o lançamento do LP "Chega de Saudade" em 1959. Em apenas três anos ele estaria no Carneggie Hall com vários companheiros - e diversos caronistas - apresentando a Bossa Nova aos americanos. A partir dai, ela seria do mundo.

Hoje, é difícil entender o impacto de João Gilberto na época. Ouvindo Chioco Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Antônio da Cunha Penna falar sobre a primeira vez que escutaram "Chega de Saudade" com ele, o sentido é sempre o mesmo: uma revelação. É como se esperassem por aquilo sem saber, e quando veio, tudo se tornou diferente. Toda o cenário musical de samba-canções com ritmo e letras aboleiradas ficou muito velho de repente, e não mais que de repente, surgia um novo jeito de fazer música mais adequado aos alegres anos JK, quando parecia ser possível e até inevitável que o Brasil se tornasse um país civilizado. Para José Ramos Tinhorão, foi uma jazzificação do samba para torná-lo palatável aos jovens de classe média, que cresciam ouvindo música americana. Mas se era só uma versão subdesenvolvida do jazz, porque os próprios americanos - e os músicos em especial - adoraram a idéia? Em entrevista a Sérgio D'avila, na Folha de S. Paulo de 22 de junho deste ano, pouco antes do baiano voltar ao Carnaggie Hall para um festival de jazz - o show dele foi o que teve os ingressos mais rapidamente esgotados - o veterano produtor George Wein respondeu à pergunta se João Gilberto era jazz da seguinte forma: "Quando João Gilberto toca violão e canta, João Gilberto é João Gilberto."

A primeira vez que ouvi João Gilberto foi nos anos 70, devia estar entre o ginásio e o colégio. Na época - como hoje - estava me iniciando na MPB e a Abril publicava uma coleção de fascículos do discos sobre o assunto. O volume dedicado a Tom Jobim vinha com "Chega de Saudadade", "Desafinado" e "Garota de Ipanema", todas com João Gilberto, completada por "Teresa da Praia" (com Lucio Alves e Dick Farney), "Samba de Uma Nota só" (versão ao piano do autor), "Dindi" (com Silvya Telles) e "Felicidade" (numa versão alternativa de Agostinho dos Santos acompanhado apenas pelo paino de Tom). Escutei exaustivamente as faixas de João Gilberto, tentando captar o que o crítico Tarik de Souza dizia nos textos explicativos sobre cada uma das gravações (porque não se fazem mais coleções como essa?). Quer dizer, dentro de um contexto pós-Bossa Nova mas completamente influenciado por ela, eu tentava compreender porque "Chega de Saudade" havia dividido a Música Popular Brasileira em duas eras: antes e depois dela.

Muito se fala da suposta influência de Mário Reis ou Chet Baker sobre o modo de João Gilberto cantar. Mas não foi cantar baixo a grande invenção do baiano - cuja grande aspiração era ser Orlando Silva - mas a forma casada de cantar e se acompanhar ao violão. A marcação segue "aquela batida" que se convencionou se chamar Bossa Nova, mas a voz atrasava ou adiantava a letra, e o acompanhamento sempre encaixava. Ao mesmo tempo, ele descobre harmonias novas e abria possibilidades que até então não se conheciam.De certa forma, ao minimalizar o samba, fez com que muito de sua riqueza oculta se revelasse.

Para transformar a nova música num fenômeno, foram fundamentais canções que se associavam ao cenário sócio-cultural e comportamental da classe média do Rio na época, canções leves e ricas em harmonias e ritmo de Tom Jobim. O espírito da garotada da Zona Sul veio à tona em letras que falavam em sol, mar e amor que dá certo. Mas para João isso não importava de fato, era possível fazer sua magia com músicas que não tinham nada a ver com aquele momento, como comprovam suas gravações de clássicos que ele ouvia em sua juventude em Juazeiro do Norte. Vale até o bolero "Besame Mucho", da qual fez uma versão inesquecível.

Para se chegar a cada versão acabada que João Gilberto grava ou apresenta em show são necessárias horas de estudo, incontáveis repetições, capazes de fazer um gato se atirar pela janela do apartamento de tanto ouvir "O Pato", como diz o anedotário do cantor criticado por Ruy Castro em seu segundo livro sobre Bossa Nova ("A Onda que se ergeu do mar") embora fosse seu livro anterior, o referencial "Chega de Saudade", que tornou essa e outras histórias nacionalmente conhecidas. Miúcha, com quem João foi casada, afirma que não conhece ninguém que trabalhe tanto. Sua fama de recluso se deve em parte à grande e lendária timidez, mas também porque não vê mais graça em outra coisa que não seja sua música. Felizmente, ele atingiu uma condição dentro da indústria cultural que lhe permite receber R$2 milhões por quatro shows.

Abaixo, no último encontro entre João e Tom, eles cantam "Garota de Ipanema". A beleza que não é só minha. E também passa sozinha.


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