A Folha de S. Paulo de hoje traz um interessante artigo de José Pereira Coutinho (só para assinantes Folha ou UOL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2907200827.htm) que de certa forma complementa meu post do dia 17 (e que reproduzi com acréscimos na última edição de Gente etc). Antes que os nerds e fãs do Homem-Morcego caiam de pau, deve-se reconhecer que, realmente, para pessoas civilizadas que não tiveram contato com quadrinhos depois da infância, não dá para levar a sério um sujeito que coloca uma fantasia para combater criminosos vestidos com roupas tão ridículas quanto. E durante muito tempo a indústria cultural confinou os super-heróis a um nicho dedicado a crianças e adolescentes, e ainda assim sem o status adquirido pelas criações de George Lucas, Steven Spielberg e até Gene Rodenberry (o criador do universo "Star Trek").
Foi preciso que a geração alimentada pelas obras de Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman e outros nos anos 80 e 90 chegasse ao poder em Hollywood. Também foi necessário que a tecnologia dos efeitos especiais permitisse alcançar convincentemente os vôos de imaginação das HQs. É a isso que me referia quando escrevi que "até os anos 80 cineastas sérios não levavam a sério sujeitos fantasiados que combatiam o mal". Mesmo pesquisadores das HQs, como nosso Alvaro de Moya, desprezavam os personagens de comic book. Para o autor de "Shazam", quadrinhos como obra de arte só os de syndicate, publicados em jornais, em suplementos dominicais ou em tiras diárias. Eram tempos de Alex Raymond ("Flash Gordon" e "X9"), Hal Foster ("Príncipe Valente"), Lee Falk (escritor de "Mandrake" e "Fantasma"), Al Capp ("Ferdinando") entre outros. Até o surgimento da Marvel no início dos anos 60, as comic book - casa dos super-heróis - eram um subproduto da indústria dos quadrinhos, então capitaneada por syndicates como King Features Syndicate (do grupo Hearst, que até hoje é dona dos clássicos "Recruta Zero", "Haggar, o Horrível" e "Krazy Kat") e a United Feature Syndicate (criada pelo rival do "Cidadão Kane", Pulitzer, que hoje distribui "Peanuts").
O crescimento da Marvel e DC esteve ligada em parte a parcerias com a TV, no caso da primeira, como o célebres "desenhos desanimados" do Homem-de-Ferro, Thor, Hulk, Namor e Capitão América; e no do segundo com os seriados televisivos do Super-Homem (1952-58) e Batman (1966-68). Mas qualquer tentativa de tornar as histórias mais adultas esbarrava no Código de Ética das HQs (Comics Code Authority) criada nos anos 50, após campanha difamatória iniciada pelo livro "Sedução do Inocente", do psiquiatra Frederic Wertham. No país da liberdade de expressão, essa iniciativa moralista - não exatamente uma censura ou proibição, mas bancas só vendiam revistas com o selo do Código - matou editoras importantes como a EC, cujo título mais famoso foi "Contos da Cripta", décadas depois transformado em série de TV, com episódios dirigidos por Robert Zemeckis ("Forrest Gump", "De Volta para o Futuro"), Russell Mulcahy ("Highlander"), Richard Donner ("Superman", "Máquina Mortífera") e Walter Hill ("Warriors - Os Selvagens da Noite", "48 Horas").
Os quadrinhos americanos só sairiam desse infantilismo tardio nos anos 70, graças em grande parte à influência das HQs européias, veiculadas pela Heavy Metal, versão americana da francesa Metal Hurlant. Desenhistas como Phillipe Druillet, Jean Giraud (também conhecido como Moebius), Milo Manara e os escritores Dan O´Bannon e Enki Bilal (os dois com obras também no cinema) eram reconhecidos como artistas importantes no Velho Mundo, e logo os americanos Richard Corben ("Den") e Berni Wrightson ("Monstro do Pântano") ganhariam prestígio participando da edição ianque.
Tudo isso chegava a nós, brazucas, em edições importadas pelo olho da cara e que degustávamos avidamente. Em plena ditadura militar, aquela mistura de sex, drugs e rock'n roll não era nada bem vista. Mas era evidente a influência que Heavy Metal começava a exercer na produção das grandes DC e Marvel, principalmente no título Conan e seus subprodutos.
O desenho animado "Heavy Metal", lançado em 1981, ia tornar evidente a influência da revista sobre a estética pop daquela década. O filme "Conan, o Bárbaro", lançado no ano seguinte mostraria quanto o cimério devia ao Den de Corben, e ainda em 1982, "Blade Runner" tornaria evidente o seu parentesco com a HQ "The Long Tomorrow", de Dan O'Bannon e Jean Giraud, adaptada na versão cinematográfica como o epsiódio "Harry Canyon", que por sua vez inspiraria o motorista de táxi de Bruce Willis em "O Quinto Elemento".
Toda essa rede efervescência que iria culminar na grande fase das HQs dos anos 80 passou despercebida por quem ainda considerava histórias em quadrinhos coisa de criança. Sem essas referências, é difícil entender como a chamada Nona Arte se inflitrou na grande indústria cultural a ponto de tornar um filme com um sujeito fantasiado digo de ser levado a sério. Coutinho não está errado: grande parte de suas ponderações fazem sentido no festival de exageros que se criou em torno de "Batman, o Cavaleiro das Trevas". Mas nos dias de hoje, a fantasia de um super-herói - especialmente de um sem superpoder - não difere tanto das militares, de tropas de elite anti-terror ou mesmo dos combatentes americanos no Iraque. E não é à toa que o Batmóvel virou um tanque de guerra - contribuição, aliás, de Frank Miller.
Pode parecer simplista, mas o mundo vive, sim, um conflito entre razão e irracionalismo, e este último nem sempre é apenas o fundamentalismo muçulmano: há lugar para fanáticos cristãos, o desprezo das autoridades e corporações americanas às questões ambientais, a ausência do Estado nas favelas que cria o poder paralelo do tráfico, e muitas outros. Batman não é o herói clássico que defende as instituições estabelecidas, mas a iniciativa necessária para mudar um estado de coisas. Da mesma forma que Dirty Harry e o Bronson de "Desejo de Matar" - citados por Cotuinho - representavam uma catarse do cidadão urbano sentia acuado pela insegurança das grandes cidades naqueles anos 70, para Batman não se trata apenas de eliminar fisicamente seus inimigos, mas lutar contra o que representam nesses tempos pós-11 de setembro, pós-Katrina e crise do crédito hipotecário. Para isso, por paradoxo, terá que enfrentar o próprio Estado, que de certa forma contribui para este status quo indesejável. É algo politicamente perigoso, mas é um sentimento generalizado. Não é algo tão infantil quanto acredita Coutinho. Há algo de mito no sentido que lhe dá Joseph Campbell: o herói faz sua trajetória de aprendizado e expiação no lugar de seu povo.
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