André Bazin certa vez escreveu que o western era o cinema americano por excelência, e Clint Eastwood que o western e o jazz são as únicas formas de arte originais da América (e, infelizmente, ambas estão mortas).
Comprei outro dia a edição de 50º aniversário de "Rastros de Ódio", caso raro em que o título em português diz mais sobre o filme que o origjnal, "The Searchers". É a obra-prima de John Ford, o papel da vida de John Wayne, e como os dois praticamente definiram o gênero, pode-se arriscar a dizer que é o melhor western de todos os tempos. Toda vez que ele passava nas madrugadas da Globo eu não conseguia desligar até o final.
A versão que adquiri tenta restaurar o original rodado em Vistavision, um formato de vida efêmero mas que muitos dizem ter sido o melhor desenvolvido pra o cinema, até o advento do Imax. Toda a beleza do Monument Valley pode ser bem melhor apreciado que na cópia televisiva que vi à exaustão.
Essa edição, lançada há dois anos - "Rastros de Ódio" é de 1956 - , vem com dois discos: um com o filme propriamente dito, com a opção de comentários de Peter Bogdanovich - diretor de "A Última Sessão de Cinema" e ex-crítico - e outro com dois documentários, um com entrevistas com Martin Scorcese (não apenas um dos maiores diretores americanos vivos como um profundo conhecedor de cinema), John Milius (diretor de "Conan, O Bárbaro" e roteirista de "Apocalipse Now") e Curtis Hanson (diretor de "LA - Cidade Proibida") e outro sobre a produção propriamente dita, com entrevistas dos sobreviventes e narrado pelo filho de Wayne, Patrick.
John Wayne é Ethan Edwards, um oficial confederado que deixou o Texas para lutar na Guerra da Secessão, e após a derrota ainda vagou por três anos para não ter que entregar seu sabre aos vencedores yankees. Ao partir, também deixou a mulher que amava se casar com o irmão, e agora é ela quem o recebe no retorno ao lar, na deslumbrante abertura em que Dorothy Jordan, atriz do cinema mudo que Ford tirou da aposentadoria para rodar três filmes nos anos 50, abre a porta da aconhegante casinha para o Monument Valley, cenário favorito do diretor.
Todas essas informações são fornecidas praticamente sem o uso de palavras. Em poucos minutos, o diretor nos apresenta os principais personagens e aspectos da personalidade de Ethan que serão decisivos para o desenrolar da trama, com uma economia de recursos magistral. Ele é um homem que não aceita derrota, um militar calejado da luta contra os yankes e os índios, a quem odeia e despreza. Isso é indicado pela forma com que trata o jovem Martin (Jeffrey Hunter, que seria Jesus Cristo para Nicholas Ray em “Rei dos Reis”), um mestiço a quem salvou de um massacre e levou para a família do irmão criar.
Logo após sua chegada, uma patrulha Texas Ranger chega à propriedade por conta de um roubo de gado possivelmente feito por índios. A intenção é convocar Aaron, o irmão, para a patrulha, mas Ethan se oferece no lugar dele e, junto com Martin, parte para a ação. Tarde demais descobrem que tudo foi uma artimanha para afastar a patrulha da área, e mesmo sob a suspeita de que atacariam sua família, Wayne não se precipita e pára para descansar e alimentar os cavalos, ao contrário do impetuoso Martin, de cavalga à toda velocidade para tentar salvar os seus. No retorno, o jovem está carregando sua sela e Ethan passa por ele sem lhe dar a mínima, apenas para confirmar seus piores temores. Todos estão mortos á exceção das duas meninas, que devem ter sido levadas pelos comanches. A patrulha parte novamente para resgatar as garotas, mas são emboscados e metade tem que voltar com um ferido. Ethan continua a perseguição com Martin e o namorado de Lucy, que ao descobrir que ela foi estuprada e morta, se lança num ataque suicida contra o acampamento índio.
O protagonista se sentia à vontade como militar, mas é derrotado e obrigado a deixar a vida guerreira regular, para um novo começo família que o recebe calorosamente, e que acaba de perder tragicamente. Seus troféus de soldado ele deixa para seus sobrinhos: ao garoto, o sabre de oficial; para a pequena Debbie, sua medalha de herói; e para a mais velha Lucy, seu casaco de oficial confederado que será a mortalha da jovem. Nada mais lhe resta além do sobrinho postiço, a quem renega, e a busca pela sobrinha perdida. Mesmo sendo desprezado por Ethan e com uma namorada impaciente esperando por ele, Martin segue por temer o que o tio fará quando encontrar a menina. Na seqüência em que tentam encontrar Debbie num forte do exército entre as sobreviventes de um ataque a uma aldeia, Ford dá um raro close em Wayne, em que ele lança um olhar mortalmente frio a uma garota branca que enlouqueceu com o choque de culturas a que foi submetida. Até o espectador, que jamais imaginaria John Wayne matando uma moça indefesa, teme o que ele pode fazer ao encontrar a sobrinha transformada em mulher de comanche..
Aliás, há diversos aspectos que apontam para as tendências da década seguinte. Um é a violência sexual, tanto a cunhada Marha, quanto a sobrinha Lucy são violentadas antes de serem mortas e mesmo Debbie era pouco mais do que uma criança ao se tornar mulher do chefe Scar, e a forma crua com que isso é sugerido era raro em faroestes. O segundo é a forma como é apresentado o exército americano, exaltado na grande trilogia de Ford dos anos 40 – “Fort Apache”, “Legião Invencível” e “Rio Grande” – tem seu papel na guerra contra os índios contestado numa cena em que o diretor ironiza um dos símbolos que ajudou a imortalizar, o toque da corneta da cavalaria, aqui executado não para “salvar o dia”, mas logo após o massacre contra uma aldeia. O próprio Martin pergunta ao encontrar a “esposa” comanche morta, “por que eles fizeram isso se ela não fez nada a ninguém?”, que se tornaria recorrente nos faroestes das décadas seguintes, mas não em 1956, quando matar índios nos filmes era tão corriqueiro quanto fumar cigarro.
“Tão certo como a Terra gira” eles encontram Debbie– transformada da menina Lana Wood para a irmã mais velha e famosa Natalie, apenas um ano depois de “Rebelde sem Causa” – como uma das squaws do chefe Scar (Cicatriz), confirmado mais um temor de Ethan, que tenta realmente matá-la, sendo impedido por Martin. No segundo reencontro, após o massacre dos comanches e de Scar, a famosa cena que, como escreve Carlos Augusto Calil em seu belo texto em “Folha conta 100 anos do Cinema”, “ainda faz muito marmanjo, cineasta ou crítico, chegar ás lágrimas”.
O filme se encerra como começou, enquadrando a porta de um lar, só que agora Ethan está partindo. Cumpriu a missão que se impôs mas não há mais lar para onde voltar. O sobrinho que tornou seu herdeiro escapou de sua sina, reconquistou a amada aos pés do altar e agora vai constituir família. Ele dá meia volta e retorna á única casa que pode chamar de sua, as imensidões da fronteira americana, inóspitas ainda na década de 50 quando o filme foi rodado.
Quando foi lançado, “Rastros de Ódio” foi recebido com indiferença pela crítica e só o tempo fez com que passasse a ser reconhecido com uma das obras-primas não só do western ou de Hollywood, mas do cinema mundial. Apesar de ter sua performance ignorada pelos especialistas da época, John Wayne tinha consciência de que aquele foi a grande atuação de sua vida, a ponto de dar o nome de Ethan a seu segundo filho homem, nascido em 1962.
Em uma carta enviada a Ford de Tóquio, quando filmava “O Bárbaro e a Gueisha”, Wayne conta a seu mentor que tinha se encontrado com Akira Kurosawa. “Ele dise que é nosso fã”, escreveu. Não de Ford ou de Wayne, mas de ambos. Não é para menos. O “Imperador” estava construindo com Toshiro Mifune outra gigantesca parceria diretor-ator. Não é só Kurosawa que era fã de vocês, Duke, mas todo mundo que ama o cinema.
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