segunda-feira, 14 de julho de 2008

O melhor faroeste de todos os tempos

André Bazin certa vez escreveu que o western era o cinema americano por excelência, e Clint Eastwood que o western e o jazz são as únicas formas de arte originais da América (e, infelizmente, ambas estão mortas).

rastros abertura Comprei outro dia a edição de 50º aniversário de "Rastros de Ódio", caso raro em que o título em português diz mais sobre o filme que o origjnal, "The Searchers". É a obra-prima de John Ford, o papel da vida de John Wayne, e como os dois praticamente definiram o gênero, pode-se arriscar a dizer que é o melhor western de todos os tempos. Toda vez que ele passava nas madrugadas da Globo eu não conseguia desligar até o final.

A versão que adquiri tenta restaurar o original rodado em Vistavision, um formato de vida efêmero mas que muitos dizem ter sido o melhor desenvolvido pra o cinema, até o advento do Imax. Toda a beleza do Monument Valley pode ser bem melhor apreciado que na cópia televisiva que vi à exaustão.

Essa edição, lançada há dois anos - "Rastros de Ódio" é de 1956 - , vem com dois discos: um com o filme propriamente dito, com a opção de comentários de Peter Bogdanovich - diretor de "A Última Sessão de Cinema" e ex-crítico - e outro com dois documentários, um com entrevistas com Martin Scorcese (não apenas um dos maiores diretores americanos vivos como um profundo conhecedor de cinema), John Milius (diretor de "Conan, O Bárbaro" e roteirista de "Apocalipse Now") e Curtis Hanson (diretor de "LA - Cidade Proibida") e outro sobre a produção propriamente dita, com entrevistas dos sobreviventes e narrado pelo filho de Wayne, Patrick.

John Wayne é Ethan Edwards, um oficial confederado que deixou o Texas para lutar na Guerra da Secessão, e após a derrota ainda vagou por três anos para não ter que entregar seu sabre aos vencedores yankees. Ao partir, também deixou a mulher que amava se casar com o irmão, e agora é ela quem o recebe no retorno ao lar, na deslumbrante abertura em que Dorothy Jordan, atriz do cinema mudo que Ford tirou da aposentadoria para rodar três filmes nos anos 50, abre a porta da aconhegante casinha para o Monument Valley, cenário favorito do diretor.

Todas essas informações são fornecidas praticamente sem o uso de palavras. Em poucos minutos, o diretor nos apresenta os principais personagens e aspectos da personalidade de Ethan que serão decisivos para o desenrolar da trama, com uma economia de recursos magistral. Ele é um homem que não aceita derrota, um militar calejado da luta contra os yankes e os índios, a quem odeia e despreza. Isso é indicado pela forma com que trata o jovem Martin (Jeffrey Hunter, que seria Jesus Cristo para Nicholas Ray em “Rei dos Reis”), um mestiço a quem salvou de um massacre e levou para a família do irmão criar.

Logo após sua chegada, uma patrulha Texas Ranger chega à propriedade por conta de um roubo de gado possivelmente feito por índios. A intenção é convocar rastros wayne Aaron, o irmão, para a patrulha, mas Ethan se oferece no lugar dele e, junto com Martin, parte para a ação. Tarde demais descobrem que tudo foi uma artimanha para afastar a patrulha da área, e mesmo sob a suspeita de que atacariam sua família, Wayne não se precipita e pára para descansar e alimentar os cavalos, ao contrário do impetuoso Martin, de cavalga à toda velocidade para tentar salvar os seus. No retorno, o jovem está carregando sua sela e Ethan passa por ele sem lhe dar a mínima, apenas para confirmar seus piores temores. Todos estão mortos á exceção das duas meninas, que devem ter sido levadas pelos comanches. A patrulha parte novamente para resgatar as garotas, mas são emboscados e metade tem que voltar com um ferido. Ethan continua a perseguição com Martin e o namorado de Lucy, que ao descobrir que ela foi estuprada e morta, se lança num ataque suicida contra o acampamento índio.

O protagonista se sentia à vontade como militar, mas é derrotado e obrigado a deixar a vida guerreira regular, para um novo começo família que o recebe calorosamente, e que acaba de perder tragicamente. Seus troféus de soldado ele deixa para seus sobrinhos: ao garoto, o sabre de oficial; para a pequena Debbie, sua medalha de herói; e para a mais velha Lucy, seu casaco de oficial confederado que será a mortalha da jovem. Nada mais lhe resta além do sobrinho postiço, a quem renega, e a busca pela sobrinha perdida. Mesmo sendo desprezado por Ethan e com uma namorada impaciente esperando por ele, Martin segue por temer o que o tio fará quando encontrar a menina. Na seqüência em que tentam encontrar Debbie num forte do exército entre as sobreviventes de um ataque a uma aldeia, Ford dá um raro close em Wayne, em que ele lança um olhar mortalmente frio a uma garota branca que enlouqueceu com o choque de culturas a que foi submetida. Até o espectador, que jamais imaginaria John Wayne matando uma moça indefesa, teme o que ele pode fazer ao encontrar a sobrinha transformada em mulher de comanche..

Aliás, há diversos aspectos que apontam para as tendências da década seguinte. Um é a violência sexual, tanto a cunhada Marha, quanto a sobrinha Lucy são violentadas antes de serem mortas e mesmo Debbie era pouco mais do que uma criança ao se tornar mulher do chefe Scar, e a forma crua com que isso é sugerido era raro em faroestes. O segundo é a forma como é apresentado o exército americano, exaltado na grande trilogia de Ford dos anos 40 – “Fort Apache”, “Legião Invencível” e “Rio Grande” – tem seu papel na guerra contra os índios contestado numa cena em que o diretor ironiza um dos símbolos que ajudou a imortalizar, o toque da corneta da cavalaria, aqui executado não para “salvar o dia”, mas logo após o massacre contra uma aldeia. O próprio Martin pergunta ao encontrar a “esposa” comanche morta, “por que eles fizeram isso se ela não fez nada a ninguém?”, que se tornaria recorrente nos faroestes das décadas seguintes, mas não em 1956, quando matar índios nos filmes era tão corriqueiro quanto fumar cigarro.

rastros lets go home “Tão certo como a Terra gira” eles encontram Debbie– transformada da menina Lana Wood para a irmã mais velha e famosa Natalie, apenas um ano depois de “Rebelde sem Causa” – como uma das squaws do chefe Scar (Cicatriz), confirmado mais um temor de Ethan, que tenta realmente matá-la, sendo impedido por Martin. No segundo reencontro, após o massacre dos comanches e de Scar, a famosa cena que, como escreve Carlos Augusto Calil em seu belo texto em “Folha conta 100 anos do Cinema”, “ainda faz muito marmanjo, cineasta ou crítico, chegar ás lágrimas”.

O filme se encerra como começou, enquadrando a porta de um lar, só que agora Ethan está partindo. Cumpriu a missão que se impôs mas não há mais lar para onde voltar. O sobrinho que tornou seu herdeiro escapou de sua sina, reconquistou a amada aos pés do altar e agora vai constituir família. Ele dá meia volta e retorna á única casa que pode chamar de sua, as imensidões da fronteira americana, inóspitas ainda na década de 50 quando o filme foi rodado.

Quando foi lançado, “Rastros de Ódio” foi recebido com indiferença pela crítica e só o tempo fez com que passasse a ser reconhecido com uma das obras-primas não só do western ou de Hollywood, mas do cinema mundial. Apesar de ter sua performance ignorada pelos especialistas da época, John Wayne tinha consciência de que aquele foi a grande atuação de sua vida, a ponto de dar o nome de Ethan a seu segundo filho homem, nascido em 1962.

Em uma carta enviada a Ford de Tóquio, quando filmava “O Bárbaro e a Gueisha”, Wayne conta a seu mentor que tinha se encontrado com Akira Kurosawa. “Ele dise que é nosso fã”, escreveu. Não de Ford ou de Wayne, mas de ambos. Não é para menos. O “Imperador” estava construindo com Toshiro Mifune outra gigantesca parceria diretor-ator. Não é só Kurosawa que era fã de vocês, Duke, mas todo mundo que ama o cinema.rastros final

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